Vitrola de Ficha: Precipício e a profunda poesia de vida de Beto Sem Braço

Laudenir Casemiro – nome verdadeiro do essencial Beto Sem Braço – foi um poeta dos mais autênticos e diferenciados no sentido de estilo. Afinal, o compositor era um tanto controverso pelos lugares e pessoas a que referenciava em sua obra e vida. E sobre um recorte específico, eu tenho algo pra falar. Seria muito fácil falar em como sua poesia era cotidiana e suburbana, bastando lançar links e mais links aqui de suas letras e músicas, mas sobre uma em especial, eu preciso esmiuçar sua história pontual e significado universal. Você já viu pelo título: Precipício.

Lançado em 1988, o LP Sorriso Aberto, de Jovelina Pérola Negra, chegou quente em nossas mãos, pela mão da gravadora RGE (na verdade, absorvida como um selo da Som Livre – Grupo Globo). E nele, além do clássico absoluto Sorriso Aberto (samba aqui, samba ali, samba lá, láááááá laia laia laia…), tivemos Precipício que, assim como todas as outras, não foram tão trabalhadas ou reconhecidas na mídia da época. Sendo literalmente um ‘lado B’ da carreira da pastora imperiana. Saca, aquelas músicas que quem é do meio sabe, mas um leigo que não ouviu o disco inteiro não tem como conhecer.

Mas sempre lembrada por quem vive o Samba, se tornou uma das tantas músicas desconhecidas até por muita gente do Samba. Aí, entra o Samba na Serrinha e sua iniciativa de resgatar sambas do underground, predominantemente dos baluartes imperianos. Imperiano é a definição desse samba, aliás. Composto por Beto Sem Braço e gravado por Jovelina, ambos talentos incontestáveis que já passaram por nossas fileiras imperiais. E quem me contou a história por trás da composição, foi Cizinho, ex-mestre-sala da escola, atual membro da Velha Guarda. E no Morro da Serrinha, em conversa sobre nosso glorioso Império Serrano. Pescou a referência? Rá!

Mas vamos lá. Contou-me Cizinho que Beto fez a música como uma espécie de chamada de atenção do compositor a Escadinha, traficante que ficou famoso por sua fuga cinematográfica de helicóptero do antigo presídio da Ilha Grande. Acontece que na fuga, o parceiro de Escadinha, Meio-Quilo, tentou ir junto, pendurado por fora do veículo, sendo alvejado por um tiro, caiu. Daí o refrão “Se eu quiser me jogar do precipício, você deixa?”. Tendeu? É uma pergunta retórica a um conhecido seu sobre como ele deixou um amigo em situação de perigo. Mas a letra até começa com a premissa da tentativa de fuga e morte de um traficante, mas os versos de Beto são, como sempre, muito mais abrangentes. Vejamos:

“São Pedro abriu a porta e fez chover

Uma tromba d’água caiu

Pingos grossos foram pêsames

Por um dos nossos que partiu

Derramaram tantas lagrimas foram tantas lágrimas

Muitas lágrimas

Daquela covardia que se viu”

Já no começo, é feito um comparativo entre a dor da perda com uma tromba d’água e a afirmação de que o que aconteceu foi uma covardia.

“Se ligue na convivência dos animais irracionais

Na vivência dos racionais

Cão e gato estão se beijando

Gato e rato brincando no porão

Garnisé criou força no gogó

E amigo do galo esporão

Os homens não se entendem

Se entendessem como seria bom

Mas não há respeito ao semelhante

E pouco amor no coração”

Aqui, acho que é a parte mais universal da letra. Pense na grandeza de quem compara um comportamento atípico de animais folcloricamente antagônicos ao ser humano em busca de uma boa convivência. Pô, se todo ser humano pensasse em cuidar do bem-estar do próximo como um cão de um gato, por exemplo, não haveria desavenças nem sofrimento no mundo. Né non?

“Se eu quiser me jogar no precipício

Você deixa

Ah, você deixa

Tens é que travar os meus impulsos

E depois não importa a queixa

Se um terceiro diferentemente vê

Jamais contigo fecha”

Essa é a parte do tal esporro de Beto pra cima do Escadinha. Se você é amigo de alguém, você deixa a pessoa fazer uma besteira dessas? Ele deixa claro que se você é amigo de alguém, não deixa a pessoa se colocar em apuros, mesmo que o amigo não queira aceitar a argumentação. E se alguém de fora achar errado impedir o amigo que vai fazer besteira, esse de fora que não é amigo mesmo.

“Um besouro voou no espaço e caiu

Sei lá quem mandou (sei lá)

Sei lá quem mandou (sei lá)

Mas alguém mandou (sei lá)

Olha lá quem mandou

Inocentemente o vento entrou

Na dança desta dor”

Evidentemente que o besouro que voou, mas caiu é o parceiro baleado e morto. Então, a poesia de Beto diz que alguém mais foi responsável por isso e, por um acaso, o ar colaborou sem intenção. Afinal, o vento está aí, cai quem quer. Brinqs! Ele apenas deixa estabelecido que teve um responsável que deveria ter tomado outra atitude pra evitar a tragédia.

“Quem entra no circo por baixo da lona

Só pode, só pode se dar mal

Mas, agora que a vaca foi pro brejo

Se perdeu no lamaçal

Os tropeiros perderam a rédea

Pra mim, não foi legal”

E ele arremata dizendo que em certas situações, dá pra antecipar uma catástrofe chegando, mas depois que acontece, é se conformar, mesmo a contragosto. Tipo, não adianta reclamar e dizer “eu avisei”, que a desgraça já está feita.

“Ai ai ai auê

Ai ai ai auê

Ai ai ai auêêêê

São Pedro abriu a porta e fez chover”

É isso, rapeize, a despeito da criminalidade envolvida nos “atores sociais” abordados na canção de Beto Sem Braço, a letra diz com analogias bem corriqueiras sobre uma grande questão da vida e que falta muito à sociedade: O amor ao próximo. Pode parecer piegas, mas esquecemos de cuidar do próximo no dia-a-dia e num descuido, pode acontecer algo ruim e ser tarde demais pra dizer que se importa. Olha quanta reflexão em frases, pra quem não conhece o contexto, aleatórias sobre coisas do cotidiano e a natureza. Daí a genialidade do artista.

Sem mais. Vou só deixar a canção no link abaixo, porque não ouvir de novo depois de estudar a música é até covardia. Rá!²

Sobre Fernando Sagatiba

Sou Fernando Garcia, o Sagatiba. Carioca, sambista, músico e jornalista. Amante de cultura pop e manifestações culturais e a sociologia do mundo em que vivemos. E apaixonado por Madureira, sobretudo, meu glorioso Império Serrano.
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